segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Laura

Como todos os dias da semana, Laura era a primeira a levantar-se. Em quinze minutos, como habitualmente, arranjava-se. Os gestos rotineiros, tantas vezes repetidos pela mesma ordem, saíam-lhe quase sem que deles tivesse consciência. Ao passar no corredor, olhava-se sempre ao espelho, mas no lugar da sua imagem, apenas via um vulto indefinido, translúcido. Sentia os outros a acordar e a começar a levantar-se. Quando começavam a aparecer na cozinha, já Laura tinha a mesa do pequeno almoço preparada, com tudo o que cada um preferia: para si, um simples chá; para o marido, café com torradas, que ele engoliria à pressa enquanto revia um qualquer documento do trabalho; cereais com leite para o filho, absorto, como sempre, com o seu jogo electrónico portátil de última geração; sumo de laranja acabada de espremer e pão integral para a filha, sempre preocupada com a linha e sempre agarrada ao telemóvel. E Laura olhava-os, consciente da sua invisibilidade. Depois de todos saírem para o trabalho e para a escola, Laura respirava fundo, e sorria. Com a rapidez e eficiência que lhe eram habituais, arrumava a casa, adiantava o jantar e tratava de qualquer outra tarefa doméstica que houvesse para fazer. Assim que terminava, ia para o quarto, despia-se e voltava a vestir-se. Desta vez fazia-o lentamente, com um cuidado especial, arranjando-se, produzindo-se. No fim, olhava-se no espelho. Ainda que ténue, vislumbrava já a sua imagem reflectida, e gostava do que via: uma mulher madura, bonita, segura de si. Saía de casa e, quando ia pelo passeio no seu passo decidido e nos seus saltos agulha, sentia os olhares que os homens com que se cruzava lhe dirigiam e que lhe aqueciam o corpo, devolvendo-lhe consistência e densidade. Quanto mais a sua manhã a fizesse sentir invisível, mais cuidado tinha nos pequenos pormenores: um decote cavado, uma racha mais funda na saia, a lingerie requintada. Seguia, avenida abaixo, até à porta discreta da casa de telhado negro, tocava à campainha e entrava, decidida. Naquela austera vivenda, durante o resto do seu dia, até à hora de regressar a casa e acabar o jantar, num quarto forrado a veludo púrpura, numa majestosa cama de pau preto feita com lençóis de cetim negro, Laura recebia os seus clientes habituais, todos cavalheiros respeitáveis da cidade.



Naquelas escassas horas, Laura satisfazia-lhes todos os caprichos e fantasias, não se negando a nada. E ali, entregando o seu corpo, sentia-o recuperar toda a consistência, desapareciam todos os vestígios de invisibilidade. Quando se olhava no grande espelho do tecto, sentia-se viva. Às seis em ponto, Laura saía de novo para a rua. Percorria o passeio da avenida até casa com o corpo a pulsar, com a memória presente das muitas mãos que a tinham tocado, com o calor dos muitos corpos que a tinham penetrado. Chegada a casa, despia-se rapidamente, tomava um duche, e vestia de novo a roupa com que se vestira de manhã ao acordar. Ao passar no corredor, nunca olhava para o espelho. Mas sabia, tinha a certeza, que a imagem que ele reflectia começava já, de novo, a tornar-se invisível. Levantava a cabeça, respirava fundo e ia para a cozinha, preparar a chegada dos outros.

Foto: "Explode" by Ugly @ Deviantart.com
Música: Emily Browning - Sweet Dreams

August: Osage County - Filmes Bestiais#1




"Mom! Mom! Where were you going? There is nowhere to go!"

Esta é apenas uma line, dita por Barbara Weston (Julia Roberts) à sua mãe, Violet Weston (Meryl Streep), do filme August: Osage Country.

O filme é bestial, cheio de monstros (como nós gostamos...), oferecendo momentos belos que nos lembram que os protagonistas poderiam, a qualquer momento retornar, à sua condição humana, caso o escolhessem fazer.

Retrato amargo de uma família que se une à volta de um suicídio. A morte de um dos seus elementos chave, abre abismos no sítio onde sempre existiram brechas, trazendo ao de cima verdades conhecidas mas sempre escamoteadas em nome da moral e das aparências.

Quando terminamos de ver o filme, instala-se um pensamento algo inquietante,  de que existem crimes que não estão contemplados na lei. E de que esses crimes, são aqueles que acontecem todos os dias a toda a gente.

A não perder!



Paz

Image by Saiaii
O meu nome é Paz e o meu mundo é Tranquilidade. Passo os dias a saltar de flor em flor ou a voar às costas de uma qualquer borboleta. Que não se pense que eu sou apenas feliz, eu sou a encarnação da felicidade e do calor.

No meu mundo, não existe dor. Pelo menos durante muito tempo! A dor não foi feita para mim, que me enrosco em peles fofinhas, feitas de arco-iris longinquos em que a chuva nunca tocou. Outros existem, que precisam da dor... Precisam dela de uma forma irritante, enervante, frenética, estú...

Ooops! Ia dizendo uma palavra feia e que traz dor. Alguém me passa um charro, por favor?

Já te disse o quanto o meu mundo é belo? Já? Pronto, então podemos continuar... Eu não digo palavras feias, eu sou uma entendedora. Eu entendo tudo, todos os comportamentos. Para mim é tudo beleza e compreensão. As pessoas são pequenas crianças, que só precisam que eu as entenda e que lhes estenda o meu mundo multicolor, talvez um sorriso e muito, muito amor.

O meu mundo está cheio de presentes, presentes de tempo e presentes de prendas também. Gosto muito das pessoas generosas que me dão tantas coisas boas, vezes e vezes sem conta. Até que chega o dia em que já não me dão o suficiente. Eu entendo, são pequenas crianças inundadas de pavor. E, nesse dia, eu digo good bye meu amor.

Porquê a cara triste? Vamos fumar um charro, minha flor!

Image by Jueaile

E, envolta em neblina azul, ela move-se para outra flor. Sorriso tatuado no rosto e diminuitivos a tiracolo, ela emana o seu favor. Sob céus tingidos de tons sanguíneos, ecoa a palavra Horror.