Como todos os dias da semana, Laura era a primeira a
levantar-se. Em quinze minutos, como habitualmente, arranjava-se. Os gestos
rotineiros, tantas vezes repetidos pela mesma ordem, saíam-lhe quase sem que
deles tivesse consciência. Ao passar no corredor, olhava-se sempre ao espelho,
mas no lugar da sua imagem, apenas via um vulto indefinido, translúcido. Sentia
os outros a acordar e a começar a levantar-se. Quando começavam a aparecer na
cozinha, já Laura tinha a mesa do pequeno almoço preparada, com tudo o que cada
um preferia: para si, um simples chá; para o marido, café com torradas, que ele
engoliria à pressa enquanto revia um qualquer documento do trabalho; cereais
com leite para o filho, absorto, como sempre, com o seu jogo electrónico
portátil de última geração; sumo de laranja acabada de espremer e pão integral
para a filha, sempre preocupada com a linha e sempre agarrada ao telemóvel. E
Laura olhava-os, consciente da sua invisibilidade. Depois de todos saírem para
o trabalho e para a escola, Laura respirava fundo, e sorria. Com a rapidez e
eficiência que lhe eram habituais, arrumava a casa, adiantava o jantar e tratava
de qualquer outra tarefa doméstica que houvesse para fazer. Assim que
terminava, ia para o quarto, despia-se e voltava a vestir-se. Desta vez fazia-o
lentamente, com um cuidado especial, arranjando-se, produzindo-se. No fim,
olhava-se no espelho. Ainda que ténue, vislumbrava já a sua imagem reflectida,
e gostava do que via: uma mulher madura, bonita, segura de si. Saía de casa e,
quando ia pelo passeio no seu passo decidido e nos seus saltos agulha, sentia
os olhares que os homens com que se cruzava lhe dirigiam e que lhe aqueciam o
corpo, devolvendo-lhe consistência e densidade. Quanto mais a sua manhã a
fizesse sentir invisível, mais cuidado tinha nos pequenos pormenores: um decote
cavado, uma racha mais funda na saia, a lingerie requintada. Seguia, avenida
abaixo, até à porta discreta da casa de telhado negro, tocava à campainha e
entrava, decidida. Naquela austera vivenda, durante o resto do seu dia, até à
hora de regressar a casa e acabar o jantar, num quarto forrado a veludo
púrpura, numa majestosa cama de pau preto feita com lençóis de cetim negro,
Laura recebia os seus clientes habituais, todos cavalheiros respeitáveis da
cidade.
Naquelas escassas horas, Laura satisfazia-lhes todos os caprichos e
fantasias, não se negando a nada. E ali, entregando o seu corpo, sentia-o
recuperar toda a consistência, desapareciam todos os vestígios de
invisibilidade. Quando se olhava no grande espelho do tecto, sentia-se viva. Às
seis em ponto, Laura saía de novo para a rua. Percorria o passeio da avenida
até casa com o corpo a pulsar, com a memória presente das muitas mãos que a
tinham tocado, com o calor dos muitos corpos que a tinham penetrado. Chegada a
casa, despia-se rapidamente, tomava um duche, e vestia de novo a roupa com que
se vestira de manhã ao acordar. Ao passar no corredor, nunca olhava para o
espelho. Mas sabia, tinha a certeza, que a imagem que ele reflectia começava
já, de novo, a tornar-se invisível. Levantava a cabeça, respirava fundo e ia
para a cozinha, preparar a chegada dos outros.
Foto: "Explode" by Ugly @ Deviantart.com
Música: Emily Browning - Sweet Dreams



